⚞ Capítulo 2 ⚟

Meu irmão caçula me fez voltar para a realidade ao me chamar pelo nome pedindo para passar o pacote de batatas que eu segurava. Saí do transe em que me encontrava, só queria estar na biblioteca da faculdade estudando e terminando de fazer meu trabalho. O prazo para entrega estava acabando e eu ainda não tinha terminado.

Hum, confesso que talvez eu tivesse terminado, mas achei que poderia ter algo a mais nas discussões e referencial teórico, o que eu já tinha escrito não era suficiente e como sou perfeccionista só iria entregá-lo quando tivesse cem por cento ao meu agrado.

A ida para o sítio do tio não veio em um bom momento, mas o que podemos fazer se são ordens da vova e temos que cumprir.

Eu não vou ser o único a ser prejudicado com o isolamento, o mundo todo vai perder com essa pandemia. Até trouxe o laptop comigo, conseguirei acrescentar o que quero aqui no sítio, só não vai dar pra apresentar, já que tem que ser feito em sala de aula e para o professor.

— Eu tô com fome, Maurício, me dá a batata.

— Calma pirralho! — falei, estendendo a embalagem pra ele. — Pode ficar com o pacote, Lu, eu não quero mais e vê se para de colocar esse dedo no nariz. Aqui não tem hospital caso comece a sangrar de novo, mamãe já te explicou que não é pra fazer isso.

Luciano me mostrou a língua simplesmente ignorando o que eu havia falado e já foi puxando o pacote com força da minha mão, nunca vi um pirralho mais teimoso.

Às vezes não tenho paciência com meu irmão, porque ele vive pregando peças em mim, mas o menino só tem nove anos, é uma criança. Já tive essa idade e sei que é divertido brincar, aproveitar cada fase da vida é a melhor coisa que devemos fazer, chega uma hora que temos responsabilidades e não podemos fugir e a única saída é crescer e enfrentar.

Sempre pensei em ir para a faculdade, só que ninguém nunca me disse que não seria fácil, eu gosto de estudar, mas é tanta coisa que às vezes fico exausto com receio de não dar conta.

Acredito que essa reflexão aconteça com boa parte das pessoas que conseguem ingressar na faculdade, por isso repreendo o pensamento e paro de me vitimizar. Foco no que tenho que fazer que a princípio é alcançar o objetivo de me formar.

Enquanto isso, minhas mães conversavam sem nem se importar com o que acontecia no banco de trás. O assunto parecia sério demais para ser interrompido por qualquer coisa. Mesmo no momento em que eu pensava na vida pude ouvir de relance o que elas falavam, era sobre os ambulantes que trabalham perto da loja delas.

Conversavam sobre os trabalhadores terem que ficar em casa por causa do decreto que foi assinado pelo prefeito onde estava proibindo o comércio de funcionar. Sobre essas pessoas que não teriam como garantir o dinheiro da semana pra se sustentar.

Eu admiro isso nas minhas mães, elas têm empatia e isso é bom, sempre que podem ajudam quem precisa fazendo o que podem. Elas conseguiram me educar de uma forma tão exemplar.

A casa do tio é muito grande, mas saber que passarei a quarentena com todos meus parentes vai me tirar o juízo, faz tempo que não vejo alguns deles, principalmente meus primos, pois eles são o oposto de mim, muito agitados.

Ganhei a fama de filho estudioso e passo boa parte do tempo apenas estudando. Talvez o convívio de alguns dias, ou melhor, semanas, com meus primos me faça bem, veremos o que vai dá.

— Chegamos! — anunciou mãe Cíntia com seu tom alegre enquanto estacionava o carro. Ela, ao contrário de mim, estava feliz por virmos aqui para o sítio, minha mãe foi uma das que aceitou logo de cara a proposta da vova de passar a quarentena em família.

— Finalmente, meu bem. Minhas pernas já não aguentavam mais, acho que a circulação até diminuiu, dá pra ver que começou a inchar, olha aqui. — respondeu mamãe Lia olhando em direção as suas pernas esperando que mãe Cíntia concordasse com ela.

— Sim, querida, ficou um pouco inchada. Não se assuste, com uma breve caminhada vai melhorar. Me deixa descarregar o carro e podemos passear até o estábulo. Se quiser podemos fazer um passeio a cavalo também.

— Tudo bem, amor, iremos caminhar. Sobre cavalgar não sei que estou disposta a isso, ficar muito tempo sentada me deixou cansada e a última coisa que quero é continuar sentada em cima de um cavalo. — respondeu mamãe Lia.

— Você quem sabe, meu bem. Faremos como você quiser. — disse mãe Cíntia, se esticando para dar um beijo na mulher que escolheu para amar.

Enquanto minhas mães dialogavam sobre o passeio que dariam logo mais e trocavam carícias eu só pensava em descer desse carro e procurar um quarto pra ficar, quarto esse que sei que vai ser compartilhado entre primos, espero que separem as crianças dos mais velhos.

Quero estar longe quando as primas gêmeas começarem a brigar. Tenho trauma suficiente por acordar por diversas vezes com a cara pintada de maquiagem feita por elas durante as férias do meio do ano quando todos viemos pra cá, ninguém sai ileso das travessuras daquelas meninas.

Sem falar na Malu, discutimos feio ano passado por causa de política, fiz uma promessa pessoal de que não entraria nesse assunto novamente com ela. A menina é do tipo que tem opinião pra tudo e demora quatro horas explicando um raciocínio. Cansa qualquer um. Sem falar que ela e a irmã estão sempre se batendo por qualquer coisa.

— De quem é esse carro, mãe? — Perguntei ao descer e fechar a porta. Não sabia se o tio Almir tinha trocado novamente de carro, e por um esportivo, que não faz o tipo dele. — Bem bonito para ser colocado nessa estrada.

— Não faço ideia, meu filho. Sim, é bonito mesmo, nem sei que carro é esse. Descobriremos de quem é o dono ao entrar na casa, mas antes me ajude a descarregar toda essa bagagem, as malas estão bem pesadas.

— Tá, eu ajudo. — falei enquanto colocava meu celular no bolso da calça.

— Sua mãe não está em condições de ajudar a tirar a bagagem então esse trabalho será nosso. — respondeu com um tom de brincadeira como se fôssemos os fortões da casa.

Mesmo que eu não passasse muito tempo com minha mãe Cíntia, era sempre divertido estar com ela. Sempre foi uma mulher ocupada, estava sempre trabalhando e eu estudando, nossos horários raramente se coincidiam, a não ser a noite quando todos estávamos em casa depois de um dia cansativo. Coisas simples como essas me faziam ver a importância de estar sempre próximo da minha família.

Entrei com as malas nas mãos indo em direção ao quarto, a casa parecia um pouco deserta para o ambiente movimentado que já conheço ter sempre aqui.

Parece que não tem ninguém.

Apenas parece, não demorou muito para eu ver meu tio vindo da cozinha na minha direção com o sorriso largo ao me ver.

— Sem abraços. — falei prontamente, enquanto diminuía o passo já quase parando ao notar que ele estava de braços abertos e com uma expressão alegre ao ver que mais gente estava chegando na sua casa.

— Ah meu sobrinho, tem abraço sim, venha cá. Seu tio está com muita saudade de você, meu garoto.

— É sério, tio. — respondi ao permanecer parado. — Foi recomendado que não devemos pegar na mão das pessoas e nem abraçar, ainda mais que acabei de chegar e já tem algum tempo que o senhor está aqui.

— Pare de besteira, Maurício. — falou ele continuando a sorrir. — Não pense que vai conseguir mudar a cultura brasileira da noite para o dia. Nós somos pessoas de abraços e afetos.

— A intenção da quarentena é justamente essa, evitar o contato, tio. Posso pelo menos lavar as minhas mãos ou tomar um banho antes de me aproximar do senhor? — perguntei, já sabendo que ele ia negar.

— Maurício, vamos passar esse tempo todo juntos, você acha mesmo que ninguém vai pegar na mão do outro e nem abraçar? Francamente. Esse vírus é só mais uma gripe, daqui a pouco ninguém mais vai ouvir falar.

Eu sei que meu tio tem Lupus, e como não sabia ao certo se ele fazia parte do grupo de risco do vírus eu preferia manter distância no primeiro momento. E abraçá-lo não era o que eu queria fazer. Mas eu não iria começar a debater com o meu tio logo na minha chegada.

Ele, assim como boa parte da população, faz parte do grupo que não acredita que o vírus é sério e que a melhor maneira de evitar o contágio é a não aglomeração de pessoas e o contato direto, pois a transmissão se dá por gotículas de saliva através de espirro ou tosse e o contato com superfícies contaminadas.

Estou vindo da cidade, fiquei em contato com o ar poluído, peguei em vários objetos desde a saída do meu quarto segurando a maçaneta da porta até pegar nas alças dessas malas. Se tem algo que tenho certeza é que eu estou cheio de sujeira no corpo. Meu desejo nesse momento é tomar banho.

Porém, me rendi e o abracei recebendo o carinho do meu tio. Mesmo assim, eventualmente ainda teria uma conversa séria com ele, as pessoas costumam entender aquilo que é repetido várias, e várias vezes e dito com jeitinho, acredito que ele deve estar assistindo ao noticiário, em algum momento vai cair na real da gravidade do vírus, pois não se fala de outro assunto na televisão.

Meu irmão ficou reclamando que não o deixavam mais assistir desenho animado, foi sacrifício minha mãe fazê-lo entender que os noticiários eram mais importantes e era aquilo que estaria passando na televisão enquanto eles estivessem em casa.

— Agora vá colocar essas coisas no quarto, alguns dos seus primos já chegaram. Sua tia está animada para ver todos vocês. Na cabeça dela isso são férias, eu prefiro até pensar assim também — disse ele reflexivo — Não gosto dessa ideia de quarentena.

Revirei os olhos.

Pelo jeito eu tinha muito que dialogar com o tio Almir. Perderia horas do meu precioso tempo deixando de estudar para então fazê-lo entender o que estamos passando, se ao fim de toda a minha explicação eu notar que ele está começando a compreender vai ter valido meu tempo.

Nem sempre é fácil convencer as pessoas, cada um tem seus próprios princípios, mas com bons argumentos mostrando pontos essenciais do assunto discutido a gente consegue pelo menos fazer o outro parar para pensar.

— É para o bem de todos nós, tio. Se toda a população fizer sua parte tudo isso vai passar logo sem que o vírus se espalhe. Eu prefiro nem pensar na situação de hospitais lotados sem capacidade para atender tantas pessoas contaminadas. — Começo a lembrar dos filmes de epidemia que costumava assistir e que nunca termina bem. Cidades vazias, tudo deserto e com poucas pessoas para dar continuidade a vida.

Eu já ia saindo quando lembrei de uma curiosidade que eu precisava sanar.

— Só uma coisa, tio. De quem é aquele carro esportivo que está lá fora? É seu?

— Que carro? — respondeu tentando se lembrar de algum carro diferente que pudesse estar no sítio. — Ah sim, aquele carro barulhento — falou fazendo careta — É do Flávio, namorado da sua prima Antonieta, ele vai passar a quarentena com a gente. Você acha que eu ia usar meu dinheiro para comprar aquilo?

— Talvez sim. — respondi rindo só para provocar meu tio.

— Você sabe que não, Maurício, eu prefiro picapes, pois uso para carregar de tudo aqui no sítio. São muito mais úteis. Tive que emprestar a minha para Yasmin ir na cidade comprar comida que a sua avó pediu. Mas por que o interesse, ficou com vontade em dirigir?

— Hahaha. Não, tio Almir. Curiosidade, apenas. Imaginei que pudesse ser mesmo seu, o senhor ainda não trocou de carro esse ano, por isso pensei. E minha prima e o namorado, você sabe aonde estão?

— Não sei, não tenho como dar conta de todos que estão nessa casa, mal consigo dar conta da sua tia. — Ele respondeu com uma cara indecente.

O meu tio sempre foi assim, fala coisas que faz com a minha tia entre quatro paredes, ou melhor, fazia, porque as histórias que ele conta hoje em dia ninguém acredita de tão mirabolantes que são. E acho ainda que ele não deve ter todo esse gás que diz.

Minha tia nem imagina as histórias que ele conta para nós, o tio sempre teve o hábito de fazer uma reunião só com os sobrinhos para vangloriar as aventuras que já fez. Eu e meus primos já vínhamos para o sítio pensando na festa da fogueira, foi esse o nome que e ele escolheu.

— Tá bom tio, deixa eu ir colocar logo essas coisas no quarto porque eu preciso de um banho. Depois eu procuro minha prima.

No instante que abaixava para pegar as alças vi um vulto passar ao meu lado, era meu irmão correndo. O pirralho se sente com total liberdade aqui no sítio, eu só espero que ele não me atrapalhe enquanto eu estiver estudando.

— Vai lá, Maurício. — respondeu o tio Almir.

Deu uns tapinhas no meu ombro e saiu enquanto eu continuei a caminhar na direção contrária para adentrar na casa.

Lembranças se passaram na minha cabeça nesse momento. Eu passei a vida toda vindo pra cá, fosse nas férias do meio do ano ou nas férias de final de ano. Aqui é um dos únicos lugares que consigo ficar sem que seja enfiado nos livros. Mas não dessa vez.

— Opa!

Me assustei ao ouvir a voz em cima de mim. Dei de cara com o tio Carlos que estava saindo de um dos quartos.

— Oi, tio. — respondi e fui entrando no quarto logo depois do que ele saiu. Meu tio me acompanhou entrando no quarto também.

— Como está a movimentação na cidade, Maurício?

— Ainda um pouco agitada, mas bem menos pessoas do que costuma ter. O senhor chegou hoje?

— Não, meu filho. — respondeu cabisbaixo.

— Aconteceu alguma coisa, tio?

— Ah! Nada grave, pelo menos eu espero que não. É que ontem tive um pico de pressão por saber que sua prima vai ficar trabalhando no hospital. Eu queria muito que ela viesse pra cá, mas você sabe, ela é enfermeira e os profissionais de saúde não podem parar.

— Sim, eu sei. Mas como o senhor está? Ainda com a pressão alta?

— Eu tomei a medicação e a pressão voltou ao de costume ontem mesmo. Imaginei que fosse de encontro ao pai. Até a Valeria cogitou vir me visitar. Pra você ver que foi sério. — disse sorrindo. Ele era divorciado, mas matinha uma boa relação de amizade com minha tia. — Porém, disse a ela que não seria necessário. Ela ficou na cidade para dar suporte a nossa filha.

— Que bom que sua pressão está melhor, tio, não dá pra brincar com doença e principalmente com esse vírus que chegou para bagunçar nossas vidas. — disse seriamente o encarando. — O senhor se incomoda se eu desfazer minhas malas?

— Claro que não, já estou de saída. Boa escolha da beliche, porque parece que já marcaram território na cama que você costuma dormir.

— Pois é, estou vendo. — falei levando a mão à nuca. — Deve ser as coisas do namorado da Antonieta. Tio Almir disse que ele veio com a prima.

— Sim, os dois devem estar na varanda grudados deitados na rede. — Fez gesto de negação reprovando o que para ele era falta de respeito.

— Tio, vai dizer que o senhor não vivia de chamego com a tia, ou com outras namoradas que já teve.

— Não tenho como negar. Bons tempos!

— Então o senhor não pode reclamar né? — Gargalhei enquanto ele permanecia sério.

— Tá, vou deixar você sozinho. — Saiu batendo o pé.

Permaneci em pé olhando para as beliches na dúvida de qual ficaria.

Olá pessoa!

Seja bem-vindo de volta esperamos que esteja se divertindo com essa história nesse período tão conturbado.
Não esqueça de nos contar o que está achando dos nossos novos personagens.
bjus,
Carol e Julia

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